FILE SÃO PAULO 2015
‘Shirley’ revisita a obra de Hopper
A obra do pintor norte-americano Edward Hopper (1882-1967) foi fortemente marcada pela luz outonal, o clima sombrio e a solidão dos personagens do filme noir americano. Assim, não surpreende que, de tempos em tempos, um cineasta resolva prestar tributo a Hopper, ao transformar uma pintura sua num tableau vivant, como o fez Wim Wenders em seu filme O Fim da Violência (1997), ao reproduzir com atores a cena do café da tela Nighthawks (1942). Os exemplos são inúmeros. Pense, por exemplo, em Janela Indiscreta (1954), de Hitchcock, que revisita as janelas urbanas criadas por Hopper no óleo Night Windows (1928). A mais recente homenagem cinematográfica ao pintor estreia na segunda-feira, 15, para convidados, no Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (File), que o Sesi abre para o público na terça, 16. Em poucas palavras: Shirley – Visions of Reality é um grande, um excepcional filme dirigido pelo austríaco Gustav Deutsch.
Deutsch, que estudou arquitetura, tem o estilo austero do cineasta francês Robert Bresson (1901-1999). Tem igualmente um olhar para o detalhe e a paciência que faltam aos realizadores contemporâneos, submissos à ditadura da velocidade – e superficialidade – do cinema de consumo. Shirley, ao contrário, é um painel ambicioso, que reproduz com fidelidade não apenas 13 telas de Hopper como resume 30 anos da história política dos EUA, desde os tempos da Grande Depressão até a marcha de Martin Luther King sobre Washington, em 1963.
Sobre seu filme experimental e intimista, que insere a personagem Shirley nas telas de Hopper, o diretor Gustav Deutsch conversou com o Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo. Nessa entrevista exclusiva por telefone, de Viena, o cineasta revelou que, além da obsessão pela pintura de Hopper, seu ponto de partida foi o desejo de entender a narrativa – literária, cinematográfica – embutida nas telas do pintor. Essas tanto podem evocar um poema de Emily Dickinson, sua autora predileta, como as peças de Thornton Wilder e os livros de John dos Passos, segundo a imaginação de Deutsch. É, aliás, com um livro de poemas de Dickinson nas mãos que a personagem da atriz Shirley surge na tela, sentada no desolador vagão de trem da tela Chair Car (1965) que a levará ao porto de embarque para o exílio parisiense, movida pela desilusão com os EUA.
Shirley, atriz emancipada, incapaz de se identificar com os ideais da classe média americana, se mantém à parte, tentando sobreviver como lanterninha de cinema (como é vista na tela New York Movie, de 1939) ou secretária (como na tela Room in New York, 1932). Nos anos 1940, Shirley estreia como atriz numa peça de Thornton Wilder, The Skin of Our Teeth, dirigida por Elia Kazan em 1942. Com seu companheiro Stephen, um fotojornalista de Nova York, Shirley tenta sobreviver aos anos 1950, mas o desapontamento com Kazan, que delatou colegas comunistas durante o macarthismo, a faz desistir do teatro para se dedicar ao companheiro doente. Com a perda do marido, ela, ex-atriz do Living Theatre, decide, enfim, emigrar para a Europa.
“Foi lendo a trilogia de John dos Passos (U.S.A, sobre a luta de 12 pessoas em busca de seu lugar na sociedade americana) que me veio a ideia de usar uma história pessoal para traduzir uma experiência coletiva de 36 anos na América – no caso, o de uma atriz que passa pela Grande Depressão, pela Guerra Fria e gosta de representar papéis de outsiders como a da prostituta Francie da peça Dead End, de Sydney Kingsley.” Essa é, aliás, uma das mais belas cenas do filme, em que Shirley (a dançarina e coreógrafa canadense Stephanie Cumming), vestindo o uniforme da lanterninha de cinema da tela de Hopper (New York Movie), repete as frases de Claire Trevor na adaptação cinematográfica de Dead End (no Brasil, Beco Sem Saída) dirigida por William Wyler em 1937.
Como Shirley é uma atriz, Deutsch recorre a óleos de Hopper que retratam justamente salas de cinema, como na sequência mais emocionante do filme, em que, após perder o marido, ela o vê sentado numa das poltronas durante a projeção do filme Une Aussie Longue Absence (Uma Tão Longa Ausência, 1961), dirigido pelo francês Henri Colpi, sobre o encontro entre a dona de um café e um homem que perdeu a memória na guerra, um vagabundo em que ela projeta o marido deportado. O gesto da protagonista olhando para trás sem ver ninguém na sala vazia, acompanhado pela trilha de Georges Delerue, sintetiza a desolação desses ambientes criados por Hopper, cinéfilo capaz de metaforizar a solidão do homem moderno recorrendo apenas a uma sala que projeta sonhos.
“Meu ponto de vista diante dessa pintura, porém, é o de espectador, nunca o de um artista tentando emular o estilo de Hopper”, observa Deutsch. Se ele fez de Shirley um mulher socialmente consciente, forte e libertária, observa, foi “para criar um contraponto à sociedade conservadora daquela época”.
Quanto ao cenário, para transformar as telas de pequenas dimensões em ambientes que acompanhem a escala humana, o diretor teve a ajuda de um pintora, Hanna Schimek, a quem ele pretende dedicar seu próximo projeto. “Foi complicado montar esse cenário e encontrar a luz e as cores exatas das pinturas originais, pois nos recusamos a pintar sombras e luzes, buscando uma reprodução física, que considerasse a materialidade.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.